UNS A
IMAGINAREM OS OUTROS
Deixo-te os números,
esses são concretos: as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem
tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.
Na semana passada, li
num jornal que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos
recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.
Sei algumas coisas
sobre ti. Estás aí, existes e respiras.
Há uns dois ou três
anos, o diretor de uma revista portuguesa de informação generalista, contou-me
que, em todos os inquéritos aos leitores, a maioria dos homens só tinha
críticas negativas a fazer. Os elogios chegavam quase exclusivamente de
leitoras.
O cálculo de
probabilidades é uma forma discreta de mostrar que não se tem a certeza do que
se está a dizer. Ainda assim, esta é uma revista e tu estás a lê-la, por isso,
se fores um homem há a possibilidade de que estejas impaciente. Se ainda não
desististe de ler, talvez te pareça que estou só a encher papel, que tenho
pouco para dizer. Se fores uma mulher, é provável que estejas à espera de ver
onde quero chegar, otimista. Mas as probabilidades são muito imperfeitas e tu,
apesar delas, continuas a ser tu. É bem possível que sejas um homem e pertenças
à minoria. Da mesma maneira, podes facilmente ser uma mulher e sentir a mesma
necessidade de afirmação que a maioria dos homens nunca ultrapassa.
Ia agora desculpar-me
e dizer que sempre embirrei com teorias à volta das diferenças entre homens e
mulheres, o que seria verdadeiro, mas não o vou fazer porque me dá um certo
alívio afirmar que a maior parte dos homens nunca ultrapassa uma necessidade de
afirmação primária, mesquinha, patética. E irritante, como se nota pela
adjetivação que escolhi. Se Freud aqui estivesse, diria que lhes faltou elogios.
Um círculo, portanto.
Homem maioritário ou
minoritário, mulher maioritária ou minoritária, uma grande parte daquilo que
sei sobre ti nasce de mim próprio. Avalio-te por aquilo que me parece possível,
parece-me possível aquilo que concebo, concebo aquilo que já fui ou considerei.
Ao mesmo tempo, interpreto-te através do filtro da minha insegurança, do meu
medo, da minha própria necessidade de afirmação. E acredito que contigo também
é assim. Aquilo que sabes de mim nasce de ti, através dos teus filtros. De
novo, um círculo.
Estas palavras são
pretextos. De mim, estas palavras dizem-te que estou aqui, existo e respiro.
Com boa ou má vontade,
tens razão nos dois casos. É certo que tenho pouco para dizer, mas também é
certo que, se quiseres mesmo, podes tentar perceber onde quero chegar. Não sei
se leste o mesmo jornal que eu, na semana passada, mas quero dizer-te, ou
repetir-te, que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos
recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.
Não se trata de um
cálculo de probabilidades, são números concretos. Eu sou uma pessoa. Tu és uma
pessoa. Uns são oitenta e cinco pessoas. Outros são três mil e quinhentos
milhões de pessoas, mais ou menos. Como eu, já estiveste em lugares com oitenta
e cinco pessoas, oitenta e quatro se contarmos contigo. Custa mais imaginar
três mil e quinhentos milhões de pessoas.
O que sabemos dessas
pessoas? Existem? Respiram? Onde estão? Será que podemos compará-las connosco?
Será que podemos compará-las umas com as outras? Umas são piores do que as
outras? São melhores? Umas merecem mais do que as outras? Merecem menos?
Tu e eu não
pertencemos nem aos oitenta e cinco, nem aos três mil e quinhentos milhões.
Convenientemente, essa verdade pode ilibar-nos de procurar resposta para estas
perguntas. Já temos tanto com que nos preocupar. Uma das coisas que sabes de ti
é que não podes resolver todos os problemas do mundo. Ou será que,
abusivamente, te estou a imaginar a partir do que me parece possível, do que
concebo, do que já fui ou considerei?
De novo, as dúvidas.
É-me difícil evitá-las. Também há as probabilidades, mas já te disse aquilo que
penso acerca delas. Deixo-te os números, esses são concretos: as oitenta e
cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais
pobre de toda a população do planeta.
Li num jornal da
semana passada. Ainda não se desatualizou. É deste tempo, deste mundo. Está a
acontecer com tanta realidade como aqui, aí, como aquilo que iremos encontrar
no momento em que deixarmos estas palavras e olharmos em volta.
José Luís Peixoto, Crónica publicada na VISÃO 1091, de 30 de janeiro
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