o
silêncio solar das manhãs
e
a magia cantada da nossa felicidade,
recordas
mãe o riso aberto
das
crianças na paz do nosso quintal?
a
luz filtrada pelos pessegueiros
e
a luz maior e muito mais limpa do olhar,
recordas
mãe a segurança
calada
dos nossos abraços distantes?,
as
minhas irmãs meninas, o
meu
pai, o teu rosto pequeno, menina,
recordas
mãe os domingos
com
gasosa e uma galinha depenada?,
a
tua cadela sem raça a guardar-nos
e
a dormir quieta aos nossos pés,
recordas
mãe como morreu
como
acabaram os domingos e as manhãs
para
nunca mais ser domingo
ou
manhã no silêncio do nosso quintal?
José Luís
Peixoto
"A
Criança em Ruínas"
Este foi o
ano em que nasceste
E
prolonga-se este ano os seus
Meses muito
grandes por ti
Este foi o
ano que te fez nascer
E chegaste
no seu leito como
Um barco
carregado de rosas
Um barco sem
leme sem remos
Que chega na
força serena do rio
E na força
de um dia demasiado
Forte na
vida na minha vida
Na vida da
tua mãe que te
Trouxe como
um barco perfumado
De pétalas a
descer um rio
Uma vida
demasiado forte e
A nascer e a
chegar no dia
Exato deste
ano em que nasceste
Para nós
para dias e anos
De auroras e
noites distantes
Dias longos
a nascerem como
O teu
sorriso de criança a
Ensinar-nos
o que esquecemos ao
Crescer a
ensinar-nos a sorrir
De novo na
vida na tua
Vida que
começou e se estende
Neste ano
sem noite sem foz
Em que
chegaste como um barco
De rosas na
primeira luz da
Madrugada
José Luís Peixoto, "A Criança em Ruínas"
No
tempo em que éramos felizes não chovia.
Levantávamo-nos
juntos, abraçados ao sol.
As
manhãs eram um céu infinito. O nosso amor
Era
as manhãs. No tempo em que éramos felizes
O
horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
As
marés traziam o fim da tarde e não víamos
Mais
do que o olhar um do outro. Brincávamos
E
éramos crianças felizes. Às vezes ainda
Te
espero como te esperava quando chegavas
Com
o uniforme lindo da tua inocência. Há muito
Tempo
que te espero. Há muito tempo que não vens.
José Luís
Peixoto, "A
Criança em Ruínas"
entre
mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
e
magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente.
eu
sou cama onde me deito, todas as noites diferente,
eu
sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo,
eu
sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa
gruta
que assusta as crianças e os homens que conhecem
o
mundo. eu sou o que não devia e rio, rio,
rio,
porque sou puro, porque sou um pouco da alegria,
porque
mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo
e
me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma
confusão
de equívocos que não entendo e não admito.
sou
arrogante, porque sou do país em que inventaram
a
arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante
com
destino traçado, como o fumo deste cigarro que
desaparece
indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio,
rio,
rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase
doente,
porque minha é esta esperança e esta vontade
de
nascer cada manhã, em cada rosto, em cada
fósforo
aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu
é
o amor e o luto e a fome e todas as coisas
que
fazem esta vida que não entendo e persigo.
eu
sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu
sou um homem vivo a sentir cada montanha,
eu
sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente,
eu sou alguém que é eu sem o saber,
entre
mim e o meu silêncio há um desentendimento
esculpido
nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio,
eu
sou a vida e o sol a iluminar-me.
José Luís
Peixoto,
in
A Criança em Ruínas
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