quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015



o silêncio solar das manhãs
e a magia cantada da nossa felicidade,
recordas mãe o riso aberto
das crianças na paz do nosso quintal?
a luz filtrada pelos pessegueiros
e a luz maior e muito mais limpa do olhar,
recordas mãe a segurança
calada dos nossos abraços distantes?,
as minhas irmãs meninas, o
meu pai, o teu rosto pequeno, menina,
recordas mãe os domingos
com gasosa e uma galinha depenada?,
a tua cadela sem raça a guardar-nos
e a dormir quieta aos nossos pés,
recordas mãe como morreu
como acabaram os domingos e as manhãs
para nunca mais ser domingo
ou manhã no silêncio do nosso quintal?

José Luís Peixoto
"A Criança em Ruínas"



Este foi o ano em que nasceste
E prolonga-se este ano os seus
Meses muito grandes por ti
Este foi o ano que te fez nascer
E chegaste no seu leito como
Um barco carregado de rosas
Um barco sem leme sem remos
Que chega na força serena do rio
E na força de um dia demasiado
Forte na vida na minha vida
Na vida da tua mãe que te
Trouxe como um barco perfumado
De pétalas a descer um rio
Uma vida demasiado forte e
A nascer e a chegar no dia
Exato deste ano em que nasceste
Para nós para dias e anos
De auroras e noites distantes
Dias longos a nascerem como
O teu sorriso de criança a
Ensinar-nos o que esquecemos ao
Crescer a ensinar-nos a sorrir
De novo na vida na tua
Vida que começou e se estende
Neste ano sem noite sem foz
Em que chegaste como um barco
De rosas na primeira luz da
Madrugada

José Luís Peixoto, "A Criança em Ruínas"



No tempo em que éramos felizes não chovia.
Levantávamo-nos juntos, abraçados ao sol.
As manhãs eram um céu infinito. O nosso amor
Era as manhãs. No tempo em que éramos felizes
O horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
As marés traziam o fim da tarde e não víamos
Mais do que o olhar um do outro. Brincávamos
E éramos crianças felizes. Às vezes ainda
Te espero como te esperava quando chegavas
Com o uniforme lindo da tua inocência. Há muito
Tempo que te espero. Há muito tempo que não vens.

José Luís Peixoto, "A Criança em Ruínas"




entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
e magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente.
eu sou cama onde me deito, todas as noites diferente,
eu sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo,
eu sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa
gruta que assusta as crianças e os homens que conhecem
o mundo. eu sou o que não devia e rio, rio,
rio, porque sou puro, porque sou um pouco da alegria,
porque mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo
e me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma
confusão de equívocos que não entendo e não admito.
sou arrogante, porque sou do país em que inventaram
a arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante
com destino traçado, como o fumo deste cigarro que
desaparece indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio,
rio, rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase
doente, porque minha é esta esperança e esta vontade
de nascer cada manhã, em cada rosto, em cada
fósforo aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu
é o amor e o luto e a fome e todas as coisas
que fazem esta vida que não entendo e persigo.
eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha,
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem o saber,
entre mim e o meu silêncio há um desentendimento
esculpido nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio,
eu sou a vida e o sol a iluminar-me.

José Luís Peixoto,
in A Criança em Ruínas

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