Até na roupa que seca
ao sol tímido de janeiro há poesia…
NAS VARANDAS DA MINHA RUA
Há roupas estendidas em todas as varandas da minha rua.
Chegou o sol a meio de janeiro, claridade que atravessa o frio. As roupas
estendidas a secar são bandeiras privadas, cada uma representa o país
específico e concreto de um corpo.
Noutras horas, estas roupas cobrem a pele de gente com pensamentos.
São calças a caminhar com pressa para chegar a algum lado, onde precisam de
sentar a sua fazenda. São camisas que envolvem peitos a respirar, corações que
batem e que, lá nessa intimidade rente à pele, fazem soar pancadas graves e
certas, lentas. São cuecas que dão conforto à minha vizinha da frente, uma
senhora com mais de setenta anos, que aprecia bons elásticos, capazes de lhe
darem uma segurança física que, sem esforço, transporta para outras dimensões
do seu quotidiano.
Os lençóis, brancos ou de cores claras, são velas de naus que
ainda navegam. A brisa, mesmo esta brisa gelada de janeiro, alimenta-os de uma
liberdade que, depois, noutras horas, são capazes de transformar em aconchego
maternal. À noite, quando esta rua amansa até quase desaparecer, são estes
lençóis que envolvem os corpos adormecidos de todos os que habitam estas casas,
que saem delas e que regressam a elas. Durante esse tempo de consciência
dissolvida no sono, os seus corpos perdem forças e precisam de um espaço que os
agarre e regenere. Esse espaço são estes lençóis, agora estendidos a secar, a
aproveitarem esta luz em janeiro.
E tudo aquilo que se agarra à pele, ou tudo aquilo que a pele
segrega, que a atravessa de dentro para fora, chega a esta roupa e permanece na
sua superfície. A transpiração, fruto do esforço e do tempo, ou o cheiro, fruto
da identidade mais profunda e biológica, colam-se a estes tecidos. A
transpiração é embebida por estes tecidos. Os contornos das pessoas da minha
rua ficam marcados nos lençóis onde dormem. Depois, num momento, como na canção
de um filme antigo, água e sabão diluem essas marcas. Esses restos de pele
seguem com a água e, se resistem, evaporam em dias como este, nas varandas da
minha rua, ascendem ao céu da cidade, misturam-se com o ar que, amanhã, quando
já não dermos por isso, será respirado, bebido, regressando ao corpo.
Assim, há um ciclo que se renova nesta roupa estendida. Não é
apenas uma imagem desta rua e das ruas que, agora, nesta cidade, aproveitam o
dia; é algo muito mais profundo, feito de tato: é a memória de dedos, suaves,
que nos educaram na sensibilidade de estarmos despertos para aquilo que nos
chega à pele.
Agora, as pessoas da minha rua estão espalhadas pela cidade.
Não sou capaz de descrever todas as intenções que carregam, talvez seja
impossível fazê-lo, não sou capaz de descrever os seus corpos à procura de
caminhos; mas sei que, no futuro próximo, talvez já amanhã, talvez na próxima
semana, terão estas roupas a envolvê-los. Nelas, irá um pouco do sol deste dia,
janeiro luminoso, e, mesmo que ninguém se lembre de reparar, estará lá um pouco
deste brilho, misturado com vida, a dar vida, a repetir vida.
por José Luís Peixoto
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