POEMA DO CORAÇÃO
Eu
queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e
também a Bondade,
e
a Sinceridade,
e
tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então
poderia dizer-vos:
"Meus
amados irmãos,
falo-vos
do coração",
ou
então:
"com
o coração nas mãos".
Mas
o meu coração é como o dos compêndios.
Tem
duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e
os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O
sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo
a obrigação das leis dos movimentos.
Por
vezes acontece
ver-se
um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e
uma lâmina baça e agreste, que endurece
a
luz dos olhos em bisel cortados.
Parece
então que o coração estremece.
Mas
não.
Sabe-se,
e muito bem, com fundamento prático,
que
esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é
coisa do simpático.
Vem
tudo nos compêndios.
Então,
meninos!
Vamos
à lição!
Em
quantas partes se divide o coração?
António Gedeão, Poesias Completas
No Coração, Talvez
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
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