O AMOR EM VISITA
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
(…)
SOBRE UM POEMA
Um poema cresce
inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras,
só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue
pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.
Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de
onde nascem
as raízes minúsculas
do sol.
Fora, os corpos
genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz
exterior das coisas,
as folhas dormindo o
silêncio,
as sementes à beira do
vento,
- a hora teatral da
posse.
E o poema cresce
tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder
destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a
face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das
coisas,
a redonda e livre
harmonia do mundo.
- Em baixo o
instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se
contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
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