quarta-feira, 26 de março de 2014



No início, era uma mania escondida. Escrever era só um porto para encostar minhas internas comichões. Numa manhã, apanhei-me a querer esvoaçar sentimentos, como direi? Desengaiolar-lhes. Depois sim, vieram as estórias.
Eram tantíssimas. Eu era uma própria estória em movimento. Acusavam-me: você inventa...! Minha desatenção no escutar desembocava em meus aumentos no contar. Minha avó sorria, ela me estava a espreitar essa mania. E eu mesmo gostava de fazer colagens das estórias dos mais velhos – meu barro prematuro.
Então pus novas máscaras nas mentirinhas e nas invenções espontâneas e atrevi-me a escrevinhar. Desatei – com o coração – a admirar grandes artífices das letras. Surpreendi-me, intimidei-me: essas pessoas já cutucaram toda beleza do mundo..., eu sou o mais atrasado!
Mas nesse sítio mágico – a Humanidade, encontrei alguns simples mestres literários. Um me disse abruptamente: vá mas é buscar seus próprios universos, não olhe de lado. Cada búzio, cada concha!

Aceitei-me. Minhas memórias, meus laços, minhas lágrimas. Li outros como quem cumprimenta mais velhos; e mesmo sem conhecer, entrei em conversações com alguns deles. Tudo numa contínua estreia da descoberta: a literatura me era já muito sagrada.
Estes momentos de aqui são tão «eu» que quase me encabula espreitar-lhes. Acompiladas salteadamente no tempo, estas estórias é que me sentenciaram: nós somos seu primeiro livro. Você, inversamente, é que renasceu nas nossas costas. Nunca mais deixámos de nos boleiar mutuamente, estóriasieu.
E – quando senti as palavras do Eduardo White acenderem-me uma deliciosa comichão, entrei em tréguas comigo mesmo: dentro tens alguém que te procura e que acordado te faz sonhar. Dentro, é no coração. Afinal, murmurei-me, esse «momento» chamado coração é o «aqui» mais próximo de cada um.


Assim me confesso.

Ondjaki


Este é o motivo de quem escreve como e com Ondjaki – desengaiolar sentimentos. E descobrir que todos voam, não havendo pequenos nem grandes. Essa visitação aos muitos que somos, às múltiplas dimensões da nossa existência: é esta a razão de ler estes Momentos de Aqui. 


Mia Couto





BOM DIA CAMARADAS
(romance)

"MAS, CAMARADA ANTÓNIO, tu não preferes que o país seja assim livre?"
Eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de água. Antes de chegar aos copos, já o camarada António me passava um. As mãos dele deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu não tinha coragem para recusar aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava à espera da resposta dele. O camarada António respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as mãos, mexia no fogo do fogão. Então, dizia:
— Menino, no tempo do branco isto não era assim...
Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histórias incríveis de maus tratos, de más condições de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada António gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo mistério.
— António, tu trabalhavas para um português?
— Sim... — sorria. — Era um senhor diretor, bom chefe, me tratava bem mesmo...


 Ondjaky




Os Memoráveis - JORGE, LÍDIA

Uma revisitação literária aos mitos fundadores da Revolução e da Democracia.
Em 2004, Ana Maria Machado, repórter portuguesa em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução de 1974, considerada pelo embaixador americano à época em Lisboa como um raro momento da História. Aceitado o trabalho, regressa, contrata dois antigos colegas, e os três jovens visitam e entrevistam vários intervenientes e testemunhas do golpe de Estado, revisitando os mitos da Revolução. Um percurso que permite surpreender o efeito da passagem do tempo não só sobre esses “heróis”, como também sobre a sociedade portuguesa, na sua grandeza e nas suas misérias. Transfiguradas, como se fossem figuras sobreviventes de um tempo já inalcançável, as personagens de Os Memoráveis tentam recriar o que foi a ilusão revolucionária, a desilusão de muitos dos participantes e o árduo caminho para uma Democracia. Paralela a esta ação decorre uma outra, pessoal e íntima: a história do pai da protagonista, António Machado, que retrata em privado o destino que se abate sobre todos os outros. Todos vivem na Democracia, uma espécie de lugar de exílio. Mas um dia, todas as misérias serão esquecidas, quando se relatar o tempo dos memoráveis.


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