No início,
era uma mania escondida. Escrever era só um porto para encostar minhas internas
comichões. Numa manhã, apanhei-me a querer esvoaçar sentimentos, como direi? Desengaiolar-lhes.
Depois sim, vieram as estórias.
Eram
tantíssimas. Eu era uma própria estória em movimento. Acusavam-me: você
inventa...! Minha desatenção no escutar desembocava em meus aumentos no contar.
Minha avó sorria, ela me estava a espreitar essa mania. E eu mesmo gostava de
fazer colagens das estórias dos mais velhos – meu barro prematuro.
Então pus
novas máscaras nas mentirinhas e nas invenções espontâneas e atrevi-me a
escrevinhar. Desatei – com o coração – a admirar grandes artífices das letras.
Surpreendi-me, intimidei-me: essas pessoas já cutucaram toda beleza do
mundo..., eu sou o mais atrasado!
Mas nesse
sítio mágico – a Humanidade, encontrei alguns simples mestres literários. Um me
disse abruptamente: vá mas é buscar seus próprios universos, não olhe de lado.
Cada búzio, cada concha!
Aceitei-me.
Minhas memórias, meus laços, minhas lágrimas. Li outros como quem cumprimenta
mais velhos; e mesmo sem conhecer, entrei em conversações com alguns deles.
Tudo numa contínua estreia da descoberta: a literatura me era já muito sagrada.
Estes
momentos de aqui são tão «eu» que quase me encabula espreitar-lhes. Acompiladas
salteadamente no tempo, estas estórias é que me sentenciaram: nós somos seu
primeiro livro. Você, inversamente, é que renasceu nas nossas costas. Nunca
mais deixámos de nos boleiar mutuamente, estóriasieu.
E – quando
senti as palavras do Eduardo White acenderem-me uma deliciosa comichão, entrei
em tréguas comigo mesmo: dentro tens alguém que te procura e que acordado te
faz sonhar. Dentro, é no coração. Afinal, murmurei-me, esse «momento» chamado
coração é o «aqui» mais próximo de cada um.
Assim me
confesso.
Ondjaki
Este é o motivo de quem escreve como e com Ondjaki –
desengaiolar sentimentos. E descobrir que todos voam, não havendo pequenos nem
grandes. Essa visitação aos muitos que somos, às múltiplas dimensões da nossa
existência: é esta a razão de ler estes Momentos
de Aqui.
Mia Couto
BOM DIA CAMARADAS
(romance)
"MAS, CAMARADA ANTÓNIO, tu
não preferes que o país seja assim livre?"
Eu gostava de fazer essa pergunta
quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de água. Antes de
chegar aos copos, já o camarada António me passava um. As mãos dele deixavam no
vidro umas dedadas de gordura, mas eu não tinha coragem para recusar aquele
gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava à espera da resposta dele. O
camarada António respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as
mãos, mexia no fogo do fogão. Então, dizia:
— Menino, no tempo do branco isto
não era assim...
Depois, sorria. Eu mesmo queria
era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histórias incríveis de maus tratos,
de más condições de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada
António gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo
mistério.
— António, tu trabalhavas para um
português?
— Sim... — sorria. — Era um
senhor diretor, bom chefe, me tratava bem mesmo...
Os Memoráveis - JORGE,
LÍDIA
Uma revisitação
literária aos mitos fundadores da Revolução e da Democracia.
Em 2004, Ana Maria Machado, repórter portuguesa em
Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução de 1974,
considerada pelo embaixador americano à época em Lisboa como um raro momento da
História. Aceitado o trabalho, regressa, contrata dois antigos colegas, e os
três jovens visitam e entrevistam vários intervenientes e testemunhas do golpe
de Estado, revisitando os mitos da Revolução. Um percurso que permite
surpreender o efeito da passagem do tempo não só sobre esses “heróis”, como também
sobre a sociedade portuguesa, na sua grandeza e nas suas misérias.
Transfiguradas, como se fossem figuras sobreviventes de um tempo já
inalcançável, as personagens de Os Memoráveis tentam recriar o que foi a ilusão
revolucionária, a desilusão de muitos dos participantes e o árduo caminho para
uma Democracia. Paralela a esta ação decorre uma outra, pessoal e íntima: a
história do pai da protagonista, António Machado, que retrata em privado o
destino que se abate sobre todos os outros. Todos vivem na Democracia, uma
espécie de lugar de exílio. Mas um dia, todas as misérias serão esquecidas,
quando se relatar o tempo dos memoráveis.
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