sábado, 8 de março de 2014



Abracei o corpo da minha mulher, segurei-lhe a mão, a sua cabeça no meu ombro, criei um pequeno embalo, como para adormecê-la, ou como se faz a quem chora e queremos confortar. Vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. O que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige. Estávamos encostados à parede, sobre o cortinado, como fazíamos na juventude para os beijos e para as partilhas tolas de enamorados. Estávamos escondidos de todos, eu e a minha mulher morta que não me diria mais nada, por mais insistente que fosse o meu desespero, a minha necessidade de respirar através dos seus olhos, a minha necessidade vital de respirar através do seu sorriso. Eu e a minha mulher morta que se demitia de continuar a justificar-me a vida e que, abraçando-me como podia, entregava-me tudo de uma só vez. E eu, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
Com a morte, também o amor devia acabar. Ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir.”

Valter Hugo Mãe, in  “A máquina de fazer espanhóis”

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