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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014


RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM

 Há na memória um rio onde navegam
 Os barcos da infância, em arcadas
 De ramos inquietos que despregam
 Sobre as águas as folhas recurvadas.

 Há um bater de remos compassado
 No silêncio da lisa madrugada,
 Ondas brancas se afastam para o lado
 Com o rumor da seda amarrotada.

 Há um nascer do sol no sítio exato,
 À hora que mais conta duma vida,
 Um acordar dos olhos e do tato,
 Um ansiar de sede inextinguida.

 Há um retrato de água e de quebranto
 Que do fundo rompeu desta memória,
 E tudo quanto é rio abre no canto
 Que conta do retrato a velha história.

José Saramago


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014


A CENSURA EXISTE EM TODO O LADO

Eu acho que a censura existiu sempre e provavelmente vai existir sempre. Porque a censura para o ser não necessita de ter claramente uma porta aberta com um letreiro, onde se diga que ali há pessoas que leem livros ou vão ver espetáculos. Não! A censura existe de todas as maneiras, porque todas as pessoas, nos diferentes níveis de intervenção em que se encontram, por boas ou más razões, selecionam, escolhem, apagam, fazem sobressair. E isso são atos de ocultação ou de evidenciação que, no fundo, em alguns casos, são atos formais de censura.
(Quanto à censura oficial dos tempos de ditadura) Aquilo que a censura demonstrou e demonstra, em qualquer caso, é que felizmente os escritores, dependendo das situações em que se encontram, são muito mais ricos de meios, de processos de fazer chegar aquilo que querem dizer aos outros, do que se imagina. Evidentemente, numa situação de censura, o escritor é obrigado a usar a escrita para comunicar isto ou aquilo ou aqueloutro, de uma maneira disfarçada, subterrânea, oculta; mas o que é importante não é que a censura o esteja a obrigar a fazer isso. O que é importante é que ele seja capaz de o fazer. E isso não vai em abono da censura como agente capaz de estimular a criatividade de um escritor, vai, sim, no sentido de reconhecer no escritor capacidades de expressão que ele usará ou não consoante a situação concreta em que se encontre. Agora, se me pergunta: a escrita sai melhor de uma maneira ou sai de outra, eu diria que provavelmente alguns dos livros que escrevi numa situação de liberdade de expressão, provavelmente num regime de censura eu não pensaria em escrevê-los.


José Saramago, in "Diálogos com José Saramago" 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013



NÃO À JANELA DA INDIFERENÇA

Já se sabe que não somos um povo alegre (um francês aproveitador de rimas fáceis é que inventou aquela de que «les portugais sont toujours gais»), mas a tristeza de agora, a que Camões, para não ter de procurar novas palavras, talvez chamasse simplesmente «apagada e vil», é a de quem se vê sem horizontes, de quem vai suspeitando que a prosperidade prometida foi um logro e que as aparências dela serão pagas bem caras num futuro que não vem longe. E as alternativas, onde estão, em que consistem? Olhando a cara fingidamente satisfeita dos europeus, julgo não serem previsíveis, tão cedo, alternativas nacionais próprias (torno a dizer: nacionais, não nacionalistas), e que da crise profunda, crise económica, mas também crise ética, em que patinhamos, é que poderão, talvez — contentemo-nos com um talvez —, vir a nascer as necessárias ideias novas, capazes de retomar e integrar a parte melhor de algumas das antigas…

José Saramago, in Cadernos de Lanzarote (1994)