quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Até na roupa que seca ao sol tímido de janeiro há poesia…



NAS VARANDAS DA MINHA RUA

Há roupas estendidas em todas as varandas da minha rua. Chegou o sol a meio de janeiro, claridade que atravessa o frio. As roupas estendidas a secar são bandeiras privadas, cada uma representa o país específico e concreto de um corpo.
Noutras horas, estas roupas cobrem a pele de gente com pensamentos. São calças a caminhar com pressa para chegar a algum lado, onde precisam de sentar a sua fazenda. São camisas que envolvem peitos a respirar, corações que batem e que, lá nessa intimidade rente à pele, fazem soar pancadas graves e certas, lentas. São cuecas que dão conforto à minha vizinha da frente, uma senhora com mais de setenta anos, que aprecia bons elásticos, capazes de lhe darem uma segurança física que, sem esforço, transporta para outras dimensões do seu quotidiano.
Os lençóis, brancos ou de cores claras, são velas de naus que ainda navegam. A brisa, mesmo esta brisa gelada de janeiro, alimenta-os de uma liberdade que, depois, noutras horas, são capazes de transformar em aconchego maternal. À noite, quando esta rua amansa até quase desaparecer, são estes lençóis que envolvem os corpos adormecidos de todos os que habitam estas casas, que saem delas e que regressam a elas. Durante esse tempo de consciência dissolvida no sono, os seus corpos perdem forças e precisam de um espaço que os agarre e regenere. Esse espaço são estes lençóis, agora estendidos a secar, a aproveitarem esta luz em janeiro.
E tudo aquilo que se agarra à pele, ou tudo aquilo que a pele segrega, que a atravessa de dentro para fora, chega a esta roupa e permanece na sua superfície. A transpiração, fruto do esforço e do tempo, ou o cheiro, fruto da identidade mais profunda e biológica, colam-se a estes tecidos. A transpiração é embebida por estes tecidos. Os contornos das pessoas da minha rua ficam marcados nos lençóis onde dormem. Depois, num momento, como na canção de um filme antigo, água e sabão diluem essas marcas. Esses restos de pele seguem com a água e, se resistem, evaporam em dias como este, nas varandas da minha rua, ascendem ao céu da cidade, misturam-se com o ar que, amanhã, quando já não dermos por isso, será respirado, bebido, regressando ao corpo.
Assim, há um ciclo que se renova nesta roupa estendida. Não é apenas uma imagem desta rua e das ruas que, agora, nesta cidade, aproveitam o dia; é algo muito mais profundo, feito de tato: é a memória de dedos, suaves, que nos educaram na sensibilidade de estarmos despertos para aquilo que nos chega à pele.
Agora, as pessoas da minha rua estão espalhadas pela cidade. Não sou capaz de descrever todas as intenções que carregam, talvez seja impossível fazê-lo, não sou capaz de descrever os seus corpos à procura de caminhos; mas sei que, no futuro próximo, talvez já amanhã, talvez na próxima semana, terão estas roupas a envolvê-los. Nelas, irá um pouco do sol deste dia, janeiro luminoso, e, mesmo que ninguém se lembre de reparar, estará lá um pouco deste brilho, misturado com vida, a dar vida, a repetir vida.

por José Luís Peixoto

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