quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014



UNS A IMAGINAREM OS OUTROS

Deixo-te os números, esses são concretos: as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.

Na semana passada, li num jornal que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.

Sei algumas coisas sobre ti. Estás aí, existes e respiras.

Há uns dois ou três anos, o diretor de uma revista portuguesa de informação generalista, contou-me que, em todos os inquéritos aos leitores, a maioria dos homens só tinha críticas negativas a fazer. Os elogios chegavam quase exclusivamente de leitoras.

O cálculo de probabilidades é uma forma discreta de mostrar que não se tem a certeza do que se está a dizer. Ainda assim, esta é uma revista e tu estás a lê-la, por isso, se fores um homem há a possibilidade de que estejas impaciente. Se ainda não desististe de ler, talvez te pareça que estou só a encher papel, que tenho pouco para dizer. Se fores uma mulher, é provável que estejas à espera de ver onde quero chegar, otimista. Mas as probabilidades são muito imperfeitas e tu, apesar delas, continuas a ser tu. É bem possível que sejas um homem e pertenças à minoria. Da mesma maneira, podes facilmente ser uma mulher e sentir a mesma necessidade de afirmação que a maioria dos homens nunca ultrapassa.

Ia agora desculpar-me e dizer que sempre embirrei com teorias à volta das diferenças entre homens e mulheres, o que seria verdadeiro, mas não o vou fazer porque me dá um certo alívio afirmar que a maior parte dos homens nunca ultrapassa uma necessidade de afirmação primária, mesquinha, patética. E irritante, como se nota pela adjetivação que escolhi. Se Freud aqui estivesse, diria que lhes faltou elogios. Um círculo, portanto.

Homem maioritário ou minoritário, mulher maioritária ou minoritária, uma grande parte daquilo que sei sobre ti nasce de mim próprio. Avalio-te por aquilo que me parece possível, parece-me possível aquilo que concebo, concebo aquilo que já fui ou considerei. Ao mesmo tempo, interpreto-te através do filtro da minha insegurança, do meu medo, da minha própria necessidade de afirmação. E acredito que contigo também é assim. Aquilo que sabes de mim nasce de ti, através dos teus filtros. De novo, um círculo.

Estas palavras são pretextos. De mim, estas palavras dizem-te que estou aqui, existo e respiro.

Com boa ou má vontade, tens razão nos dois casos. É certo que tenho pouco para dizer, mas também é certo que, se quiseres mesmo, podes tentar perceber onde quero chegar. Não sei se leste o mesmo jornal que eu, na semana passada, mas quero dizer-te, ou repetir-te, que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.

Não se trata de um cálculo de probabilidades, são números concretos. Eu sou uma pessoa. Tu és uma pessoa. Uns são oitenta e cinco pessoas. Outros são três mil e quinhentos milhões de pessoas, mais ou menos. Como eu, já estiveste em lugares com oitenta e cinco pessoas, oitenta e quatro se contarmos contigo. Custa mais imaginar três mil e quinhentos milhões de pessoas.

O que sabemos dessas pessoas? Existem? Respiram? Onde estão? Será que podemos compará-las connosco? Será que podemos compará-las umas com as outras? Umas são piores do que as outras? São melhores? Umas merecem mais do que as outras? Merecem menos?

Tu e eu não pertencemos nem aos oitenta e cinco, nem aos três mil e quinhentos milhões. Convenientemente, essa verdade pode ilibar-nos de procurar resposta para estas perguntas. Já temos tanto com que nos preocupar. Uma das coisas que sabes de ti é que não podes resolver todos os problemas do mundo. Ou será que, abusivamente, te estou a imaginar a partir do que me parece possível, do que concebo, do que já fui ou considerei?

De novo, as dúvidas. É-me difícil evitá-las. Também há as probabilidades, mas já te disse aquilo que penso acerca delas. Deixo-te os números, esses são concretos: as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta.

Li num jornal da semana passada. Ainda não se desatualizou. É deste tempo, deste mundo. Está a acontecer com tanta realidade como aqui, aí, como aquilo que iremos encontrar no momento em que deixarmos estas palavras e olharmos em volta.


José Luís Peixoto, Crónica publicada na VISÃO 1091, de 30 de janeiro


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